King Lear
p
King Lear
x14 mai 2022 | 22h00

Entre 2006 e 2009 pegámos pela primeira vez num texto de William Shakespeare: King Lear. E dando-lhe um tom de arte popular e fazendo do rei um fingido cidadão e um clown experimental reconstruímos, com dois atores, as vinte e muitas personagens da peça original.

Agora, década e meia depois, o regresso ao texto com três companheiros de viagem, três atores que de novo incentivam o processo de reflexão acerca e sobre para que importa e para que serve o teatro nos dias de hoje. De novo nos armamos de perseguidores e fomos em busca das sensações profundas. Das coisas transcendentais que nos tocam à superfície e nos empurram nas profundidades do existir.

As palavras do texto têm imensa força dentro e remetem para tantas coisas do passado — reminiscências de outros artistas, tempos, obras, paisagens, universos, — como de assuntos do futuro e dessa simbiose entre humano e natural, entre a pedra e a carne, o vegetal e o espírito. Nesse sentido as palavras e as coisas são objetos de liberdade, gestos em busca da sua libertação e que nos trazem em simultâneo sentimentos paradoxais, de gratidão e ingratidão. Gratidão por termos uma vida de cada um para viver e ingratidão (filial e não só como vem expresso no texto de Shakespeare) pela nossa infinita incapacidade de tudo amar. O processo de estar vivo é sinónimo de crueldade. Há uma beleza na nossa interna deterioração que é mais do que um apelo estático. É uma necessidade vital que escapa à apreensão estética do mundo. Não estamos apenas a falar de sentimentos, mas da vida que os transporta e levanta. Essa perseguição faz parte dessas razões vitais que nos animam os movimentos do ser e da alma.

No final fica a estupefação e o abalo cá dentro. Que é, em simultâneo, um calor e um gelo ao percebermos que as coisas mudam e que não as podemos abraçar e fixar. Lançarmo-nos nas alturas que nos chamam e elevar o que em nós é humanidade e descer às profundezas e integrar os “nossos mais obscuros propósitos” como nos diz Lear logo a entrar. Ultrapassar o que em nós é físico e arriscar viver a nossa vida. É isso que o texto de Shakespeare nos incentiva acima de tudo. E como disse Jung, a descobrir o que nos transcende por: "Que o mundo, tanto por fora como por dentro, é sustentado por bases transcendentais, é algo tão certo como nossa própria existência."